domingo, 27 de abril de 2008

Charles Bukowski

"Eu odeio pessoas, você não? Não. Só quando elas estão perto de mim"

Quando li “Cartas na Rua”, em 1984, dica de uma amiga, na medida em que mergulhava na impactante descrição da vida feita pelo Buck, sem piedade, frescuras e hipocrisia, de vez em quando fechava o livro e pensava, “esse cara é dos meus”. A literatura de Charles Bukowski, autobiográfica, amplamente lúcida e, sob um ponto de vista, até asquerosa, é genial. Como Kerouak, Baudelaire, Breton, Rimbaud, Artaud, Leary e Hemingway - ídolos em seus tempos - tornou-se um ícone da arte marginal. Bukowski, um dos escritores contemporâneos mais influentes, imitados e conhecido por sua linguagem ácida, cheia de palavrões e situações bizarras, nasceu na Alemanha em nove de agosto de 1920 (pai americano e mãe alemã) e mudou-se para os EUA aos três anos. Em sua agitada e etílica existência, coexistiu com as gerações beatnik (a literatura de Buck às vezes é confundida com a beat, mas não tem nada a ver e ele abominava qualquer comparação nesse sentido), hippie e punk, com sua volúpia de beber cerveja, escrevendo a mais pura literatura das ruas, dos bares e do vômito lúcido que exalava de sua máquina de escrever. Anarquista, cínico, marginal, antiacadêmico, anti-grupos literários, lírico, alcoólatra (ele não se achava), machista (no fim da vida mudou um pouco), politicamente incorreto, escatológico, e um sensacional escritor, falava de pessoas comuns, que bebem, que não tem futuro, que correm atrás da grana para pagar as contas e andam na contra mão do “vencedor”, aquele modelo babaca do norte-americano perfeito. Bullshit!!
O Velho Safado, como é conhecido, viveu e morreu (em 1994 aos 74 anos) na Califórnia, em Los Angeles. Tinha um ódio mortal do seu pai psicopata, que constantemente o espancara na infância e adolescência, sem motivos aparentes, aos olhos de sua mãe, omissa. Apelidado de Hank, foi um jovem estranho. Sentia-se como um alien na efervescente Los Angeles do “boom” hollywoodiano, o que era ainda mais acentuado por sua aparência bizarra. Seu rosto era coberto pôr espinhas monstruosas que jorravam pûs. Nos anos 1940 perambulou pelos Estados Unidos, fazendo trabalhos braçais e levando uma vida errante entre brigas e bebedeiras. Sempre adorou as corridas de cavalos e, como um guerreiro que espreita, olha e vê, conquistou seu espaço na literatura a duras penas. Teve textos recusados por revistas e jornais, muitas vezes. Começou a ficar famoso nos anos 1960 e passou a freqüentar festas e eventos de poetas beats, como Allen Ginsberg - quando quase sempre era irônico e manipulador - roubando a cena com seu sarcasmo e sinceridade impiedosa. William Burroughs o esnobava, mas Jean Paul Sartre era seu fã (alguns dizem que ele mesmo inventou isso). Como legado deixa, mais do que os cerca de 50 livros publicados, entre romances, prosas e poesias, a lição de que a vida é feita para ser percorrida com intensidade, em liberdade e sem limites. Uma opção bem complicada para a quase totalidade das pessoas que moram no planeta dinheiro/aparências/poder. Mas lá no íntimo da sua alma, qual seria o real sentimento vivido pelo escritor que escolheu um modo de vida alternativo e desponjado? Para um cara que se achava durão, teve suas pirações, seus medos e inseguranças. E, ao contrário do que muitos pensam, não morreu por causa do álcool, mas sim devido a uma leucemia. E drogas, apesar de ter usado em algumas ocasiões, achava coisa de caretas!

Arte da Transformação
Mulheres”, uma das suas obras mais conhecidas, relata as bebedeiras de Henry Chinaski - um dos seus alter egos - e seus conturbados relacionamentos com várias mulheres: Lilly, Lydia, Valerie, April, Dee Dee, Nicole, Mindy, Tammy, ...etecetaras. As personagens foram baseadas em suas namoradas e casos e, algumas delas, identicando-se, ficaram chocadas com a descrição “sem dó” que o escritor fez. É quase uma viagem lisérgica pelo mundo do sexo, das corridas de cavalo e da ressaca. Tudo bem amarrado, explorando a riqueza dos relacionamentos, retratados cirurgicamente através de um texto direto e avassalador, que disseca a alma e as fraquezas das pessoas, expondo-as ao limite da piração. No clássico “Hino da Tormenta” ele relata a morte de Jane Cooney Baker, uma das suas mulheres mais preferidas e admiradas, e que literalmente bebeu até morrer. Foi uma das fases mais tristes da sua vida. Depois do enterro, bebeu sem parar por semanas e ficou deprimido por meses. Falido e doente, passada a tormenta e a vontade de suicídio, começou a produzir muito, e brilhantemente. Enfim, chamou atenção de editores e críticos como algo novo na literatura. Para ele, a imagem do sonho do “american way of life”, é uma lata de lixo onde ele cospe sangue sujo. E isso era novo, real e interessante. Em alguns poemas de “Hino da Tormenta” fica nítido que, camuflada na aparência decadente de seus personagens, se esconde uma poesia estruturada e ambiciosa, como é o caso do “A Chupada do Gargalo da Garrafa”, onde a rotina de um bar é interrompida por uma mulher desdentada, que não hesita em tirar a roupa em troca de um gole de whiskie, ou o poema:


me levou 15 anos para humanizar a poesia
mas será preciso mais do que eu
para humanizar a humanidade


Admirado por gente como Norman Mailer e Henri Miller, foi transformado em quadrinhos por Robert Crumb e viu filmes serem produzidos a partir dos seus livros. Mickey Rourke e Sean Pean (de quem se tornou amigo - acabaram estremecidos porque Buck achava Madonna decadente) disputaram o papel de Bukowski no cinema. Burfly (1987), com Rourke e Faye Dunaway, é uma ótima trilha visual para sua obra, uma mescla de passagens de vários livros transformado em roteiro por Hank, que acompanhou as filmagens de perto. O grande diferencial do seu trabalho foi descrever a sua própria vida da maneira mais nua possível. Visceral, falou de seus amigos, das amantes (Linda Lee foi a sua esposa preferida), dos companheiros de copo e de trabalho. “Cartas na Rua” é um soco no estômago que descreve os doze anos em que trabalhou no correio, em Los Angeles, nas décadas de 1950 e 1960. Entre a organização de correspondências e pacotes, a entrega de cartas, fodas, idas as corridas, garrafas de vinho barato e vômito no assoalho do seu velho quarto, entre as "coisas nojentas" da sua literatura, Bukowski tem a competência de produzir um texto requintado em relação à condição humana tão “over” em que vivia. O que ele diz não é nítido e claro, porém flui de forma discreta como pequenos goles de Jack Daniels, caubói. A arte de transformar o thrash em emoção. Porém, ao contrário da imagem definitiva que muitos têm, o escritor passou a viver com um certo conforto a partir do início dos anos 1970.

O jornalista inglês Howard Sounes (também biografo de Bob Dylan), ao escrever “Charles Bukowski Vida e Loucuras de um Velho Safado” (Editora Conrad), fez um livro bem legal. E foi fundo. Conversou com quase todos os amigos, amantes, companheiros de copo e familiares do escritor. Teve acesso a correspondência íntima de Bukowski e aos seus trabalhos inéditos. No prefácio ele descreve o genial escritor. “Bukowski tinha uma aparência estranha e um modo peculiar de falar. Era um homem alto, de um metro e oitenta, encorpado, com uma barriga de cerveja, mas sua cabeça parecia grande demais para o corpo, e o rosto era assustador como uma máscara de Frankenstein: queixo comprido, lábios finos, olhos tristes, apertados e encovados”. Uma descrição questionável. Mas, o grande rosto marcado pelas espinhas, o nariz de beberrão e uma barba desigual, isso sim o caracterizava fisicamente. Não gostava de badalações, dar entrevistas e de falar em público, mas dar palestras não era incomum. Um outro trecho do prefácio sintetiza sua atitude anárquica em lidar com a fama: “Certa vez, em São Francisco, levantou-se da cadeira e pegou uma cerveja na geladeira, atrás dele, no palco. A platéia aplaudiu enquanto ele bebia, emborcando a garrafa até tomar a última gota dourada. “Isto não é uma muleta", disse ele, falando lentamente, com uma cadência na voz, como W. C. Fields. "É uma necesssssidade”.
No início dos anos 1990 ganhou de sua filha, Marina, um Macintosh. Fascinado pela utilidade do “brinquedo”, ficou revigorado e voltou a produzir com entusiasmo. Em 1992 escreveu “The Last Night of the Earth Poems”, seu primeiro trabalho com um computador. Uma das coisas mais legais, e que deixou Hank envaidecido nos seus derradeiros anos, foi quando foram a um show do U2, em LA. Bono Vox dedicou o show ao casal Bukowski e um grande urro foi ouvido no estádio (O U2 gravou uma música em sua homenagem, ´Dirt World`). O Velho Safado morreu em nove de março de 1994 deixando a maior parte de sua obra inédita. Bukowski foi, é isso. Um escritor diferente, uma alma em constante ebulição, com uma visão crítica profunda e afiada de uma sociedade repleta de contradições e paradoxos. Sua escolha pelos bares “hard”, pelas putas, pelas quaisquers, pela “escória” dos desamparados, pelos amigos simples e beberrões, pela estética do anti-tudo, pela literatura tosca, crua, mas artisticamente competente, o tornou imortal. Como fã de carteirinha do velho Buck finalizo com um diálogo genial do mestre: "Eu odeio pessoas, você não? Não. Só quando elas estão perto de mim" .


Retirado de "http://www.dynamite.com.br/2003a/view_coluna_action.cfm?id_colunista=22&id_show=1677"

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